SEUS PAIS E SUA VIDA
NASCIMENTO E BATIZADO
Na pequena cidade de Bucchianico, na Itália, perto de Chieti, e próximo a Pescara no Mar Mediterrâneo, nasceu Camilo de Lellis, e também foi lá, na sua cidade, que começou a impressionante história da sua vida.
Seus pais eram João e Camila, que se casaram em 1526, ele com 25 anos de idade e ela com aproximadamente 30 anos. Era de família nobre, os De Compelli, de Loreto Aprutino, no Teramano. Conforme o costume da época, o matrimônio não aconteceu por amor, às núpcias foram promovidas pelo irmão dela, que estimava muito o jovem Capitão. Mas, com o tempo, o casal harmonizou o viver, embora, com a sua vida de militar, sempre estivesse longe do lar, e por essa razão, não se possa jurar sobre a fidelidade absoluta e constante de João. Ela, porém, era angelical, afetuosa e paciente, sempre esperava ansiosa a volta do marido das contínuas transferências militares, às vezes para locais muito distantes. Mas quando ele chegava, o acolhia com alegria e entusiasmo.
João de Lellis era um típico personagem do Renascimento, homem das armas que alternava o seu serviço à Coroa de Espanha e a República de Veneza, numa Itália politicamente fraca e dividida. Nele estavam também todas as contradições de sua época: homem de fé sincera e ao mesmo tempo, aventureiro; marido e pai afetuoso, mas jogador inveterado e esbanjador. Sua profissão de combater por ofício lhe havia propiciado certo bem-estar e prestígio, em Bucchianico e nas redondezas, mas ao preço de um contínuo afastamento da família, que estava desestabilizada pela falta de um guia seguro e presente.
Dia 25 de Maio, era a Festa de Santo Urbano I, Papa e mártir, patrono da cidadezinha de Bucchianico. Para a Santa Missa solene, toda a cidade queria estar presente na Igreja do Patrono. No ano de 1550, a senhora Camila, esposa do Capitão João de Lellis, entrou logo cedo na Igreja de São Urbano, para participar de uma das primeiras Missas do dia, longe dos olhares indiscretos, porque estava grávida, quase aos sessenta anos de idade e com os cabelos já grisalhos, e por isso, se escondia das pessoas, imaginando ser censurada por sua gravidez. Estava muito feliz e agradecia a DEUS, primordialmente porque um novo filho iria encher o seu coração de mãe, vazio com a partida de José, que foi o seu primeiro filho e morreu inesperadamente. E justamente na hora da Consagração, na Santa Missa, começou a sentir as dores do parto. Decididamente levantou-se e correu com todas as suas forças para chegar a casa, sendo socorrida por algumas mulheres que presenciaram o fato. E atendendo aos pedidos de Camila, elas a colocaram confortavelmente no estábulo da residência, seguindo o costume devoto de muitas mães cristãs, de dar a luz ao filho do mesmo modo como nasceu o MENINO JESUS.
Logo que a notícia se espalhou , também o novo pai correu para casa, deixando o desfile militar, pois como oficial que era, estava na parada comemorativa com toda a tropa.
O SONHO DA SUA MÃE
Camilo foi batizado dois dias depois na Paróquia de São Miguel Arcanjo. Foi uma grande festa para os familiares e amigos. A idosa mãe não poderia estar mais feliz. Entretanto, quando grávida, esperando por Camilo, teve um sonho inquietante. “Ela se viu diante de um grupo de crianças, e na frente delas um menino mais alto, forte e todos eles, tinham uma cruz no peito. Influenciada pelos acontecimentos daquela época, com derramamento de sangue e enforcamentos, interpretou a visão como um sinal de mau presságio, vendo nas crianças um bando de malfeitores, e na chefia, justamente o seu filho, destinado talvez ao crime e à forca”.
Se soubesse o verdadeiro significado daquele sonho e da cruz, Camila não só abandonaria qualquer temor sobre o filho, mas, para o resto da vida, estaria mais orgulhosa e feliz do que se encontrava naquele momento.
UMA NULIDADE DESENFREADA
O segundo filho dos Lellis logo se apresentou ao mundo como uma criança robusta e fisicamente dotada, tornando-se um rapaz com mais de dois metros de altura. E esta exuberância de saúde, pela sua própria constituição necessitava constantemente de se movimentar com uma vitalidade irrefreável. Desde a manhã até a noite, fora de casa, buscava o ar livre e os espaços onde correr, saltar e brincar até perder o fôlego. E a mãe Camila tinha dificuldade em mantê-lo em casa. O pai, João, como soldado profissional, estava quase sempre fora, numa época em que a comunicação era muito difícil e os seus afastamentos eram muito longos. Por isso, Camila estava sempre sozinha, cuidando da casa e das mil exigências do cotidiano, inclusive a educação do filho, que por sua própria natureza viva, exigia a presença e orientação de ambos os pais. Por esta razão, ausente João, a tarefa de mãe e de educadora era quase titânica para Camila. Em consequência, a família não funcionava da melhor forma. A mãe fazia tudo o que podia, mas o rapaz aproveitava a meiguice e indulgência materna, para fazer as coisas ao seu modo, vadiando e perdendo o tempo com os amigos, na praça e nos campos. O pai quando voltava, gritava com ele e tentava colocá-lo nos “eixos”. Mas é claro que as intervenções educativas esporádicas e unicamente de caráter repressivo não eram suficientes para corrigir um caráter mal formado. João usou até o recurso da instrução, conseguindo que seu irmão Alessandro que era professor, instruísse com aulas a Camilo, ao sobrinho Onofre e a outros colegas deles. Mas o rapazinho não tinha vontade de aprender nada, era insuportável também lá, e em todo o seu percurso escolar, aprendendo muito pouco, somente a ler, escrever e fazer contas.
MORTE DA SUA MÃE
Os anos passavam e Camila cada vez mais esgotada e enfraquecida com a luta de cada dia, não resistiu e faleceu na metade da década de 1560, entre 1563/65 quando o seu filho tinha entre 13 e 14 anos de idade.
Camilo continuava daquele mesmo jeito, com maus hábitos, idéias excêntricas, cultivando a preguiça e vivendo sem preocupações, na companhia dos amigos e das namoradas. Crescia com estes defeitos e outros, herdando o mau exemplo do pai e se tornando vítima do jogo de azar. Não era um marginal, não fazia mal a ninguém, ao contrário, até revelava um coração bondoso. Mas era uma nulidade desenfreada, um belo motor girando no vazio, com muita energia não utilizada. Com as cartas, esbanjava a maior parte do tempo, perdendo todo o dinheiro que o pai lhe dava e se tornando cada vez mais escravo do vício.
AVENTURA MILITAR
Com o passar do tempo, Camilo compreendeu que Bucchianico era muito pequeno para as suas pretensões, queria viajar, vestir-se bem, e o pai lhe dava dinheiro em conta-gotas, querendo refreá-lo. Mas sem qualquer instrução, como enfrentar o mundo? Foi quando decidiu seguir as pegadas do pai, entregando-se a vida militar. Assim, em 1567, com 17 anos de idade, quis se alistar no exército, também imitando muitos jovens que na Europa escolhiam o ofício das armas. Camilo seguiu em companhia de um amigo, Marino, para alistar-se no exército de Veneza. Todavia, o alistamento foi cancelado pelas autoridades e eles tiveram que voltar a casa. Em 1570 surgiu uma nova oportunidade com a “Santa Aliança” feita pelo Papa Pio V e a Espanha e Veneza, para barrar a expansão turca. De Bucchianico partiu uma pequena comitiva de aspirantes ao recrutamento, e entre eles estavam Camilo com 20 anos de idade, dois primos e o seu pai João com 70 anos. Mas o seu pai, embora com muita experiência, não tinha mais o vigor dos anos anteriores, chegou a Ancona quase morto e caiu de cama com febre. O filho Camilo também adoeceu. Mas, sendo jovem e forte, logo se curou. Todavia, pai e filho, decidiram não seguir viagem e voltaram, passando por Porto Recanati, Loreto e Sant’ Elpidio a Maré, na casa de um velho companheiro de armas. Ali o Capitão Lellis piorou de repente e morreu nos braços do filho. Depois de sepultar o pai na Igreja de São Francisco na cidadezinha de Sant’ Elpidio a Maré, Camilo decidiu retornar a Bucchianico. Aos pensamentos tristes juntou-se a realidade da falta de dinheiro, de não ter nenhum emprego e de não ter qualquer instrução para conseguir uma boa colocação. E juntou-se a estes fatos, a ocorrência que nos últimos dias, os pés e as pernas voltaram a incomodá-lo com frequência. Primeiro descobriu uma estranha bolha no pé esquerdo, que desapareceu depois que ele a furou, tratando-a com soro. Em seguida surgiu outra ferida no tornozelo do pé direito mais feia e persistente, que provocava um prurido e ao invés de sarar, se espalhava pela perna. Este problema acompanhou Camilo por toda a vida.
A PRIMEIRA INSPIRAÇÃO
Ainda na estrada, rumando para casa, os pensamentos negativos ocupavam a sua mente, pois não sabia o que fazer. Foi quando cruzou com dois frades franciscanos, que ligeiros e alegres vinham de Loreto e caminhava para o trabalho. Ele os invejou de todo o coração. E como no meio de sua confusão mental invocava a luz e a proteção Divina, imaginou que aquele acontecimento representasse um sinal do Céu, convidando-lhe a escolher uma direção a sua vida. Por isso, olhando para cima e com as mãos juntas, agradeceu ao SENHOR e imediatamente retomou o caminho com ardor renovado. Decidiu ir para Áquila, onde morava um tio materno que era religioso franciscano, Padre Paulo, de Loreto Aprutino, ex-provincial dos Abruzos e agora guardião no Convento local de São Bernardino. Quando o sobrinho chegou todo ansioso, desalinhado e com barba longa, declarando o propósito de fazer os votos, ele ficou petrificado. Todavia, acolheu-o afetuosamente, convidando-o a se recuperar e restaurar as suas forças. Com isso, teve tempo de conversar com Camilo sobre a sua intenção, porque conhecendo o mundo, vislumbrava na vontade do sobrinho uma decisão apressada. O frade não estava errado, à medida que Camilo recuperava a saúde, mostrava diminuir o entusiasmo para entrar no Convento. Assim, depois de alguns dias, em pleno vigor, despediu-se do tio e seguiu viagem para Bucchanico.
A FERIDA NA PERNA DIREITA
Na terra natal, Camilo retornou a vida habitual, caminhando zonzo pela cidade ou pelos campos, atrás das moças ou nas festas, reuniões sociais e jogos de azar, dados e cartas. Já não tinha muito para jogar e perder, pois já estava reduzido a miséria, sem trabalho e sem nenhuma vontade de procurá-lo. O único jeito era mesmo se alistar para a vida militar, seguindo o caminho do pai. Mas havia um problema, a ferida do pé direito que parecia ter cicatrizado em Áquila, começou novamente a doer e a sangrar, subindo até o joelho, às vezes tornando difícil e doloroso caminhar. Um médico de Chiete diagnosticou como problema sifilítico de origem venérea e por isso, ele foi aconselhado a ir se tratar no Hospital Romano de São Tiago dos Incuráveis.
Camilo quando chegou pela primeira vez a Roma era apenas um pobre desorientado, um soldado aventureiro sem ofício, entregue ao jogo de azar (baralho e dados), órfão de pai e mãe, e vítima de uma doença incurável. Alguns diziam que era sífilis, a peste do século XVI. Mas na verdade, ia se internar no Hospital São Tiago dos Incuráveis. A doença contraída por Camilo em sua juventude errante e aventureira, e cujas consequências o afligiram por toda a vida, era realmente uma infecção pela sífilis? O fato é que aquele Hospital era destinado, sobretudo, e não somente, a terapia dos atingidos por doenças venéreas. Mas este não era o problema que incomodava, pois era o resultado de sua vida errante. O importante era buscar a cura a fim de ter plena disposição para seguir o seu caminho.
PRIMEIRA INTERNAÇÃO NO HOSPITAL
Assim, com quase 26 anos de idade, nos primeiro dias de Março de 1571 ele se internou no Hospital. O tratamento era feito a base de guaco, uma madeira resinosa importada das Antilhas, desde o inicio do século XVI, que era considerado por muitos como “um santo remédio” feito de uma “santa madeira”. O tratamento era singular, começava a noite, após serem fechadas e trancadas as portas e janelas do prédio. As duas enfermarias, a dos homens e das mulheres, eram aquecidas com grandes caldeiras sempre acesas, ficando bem aquecidas. E se ainda não fosse suficiente, colocavam aquecedores nos leitos. Era preciso fazer os doentes suar, e depois de uma transpiração abundante, lhes era administrada, bem quente, a dose diária da mistura. Depois de duas horas aproximadamente, entravam os médicos, cirurgiões e ajudantes para executarem a segunda parte do tratamento, com sangrias, aplicando sanguessugas, cortar ou espremer abscessos e demais intervenções terapêuticas, enquanto os serventes recolhiam e esvaziavam os conteúdos dos rejeitos orgânicos. Com dificuldade se respirava naquele ar aquecido e insalubre. Era um mal cheiro que impregnava todas as dependências. Os locais permaneciam fechados e todos os dias repetiam o mesmo ritual, durante quase um mês e meio. Os doentes, alguns desistiam, outros recuperavam a saúde antes do fim do tratamento, mas cura mesmo as autoridades não puderam constatar nenhuma.
Camilo saiu do tratamento um pouco melhor do que estava, não tinha dores e nem sangramentos e a ferida estava parcialmente cicatrizada. De tal modo que no inicio de Abril de 1571 foi chamado a servir como atendente nas enfermarias do próprio Hospital, como era comum entre os doentes pobres que haviam se recuperado. De inicio mostrou um grande interesse e empenho no serviço, tanto que em 13 de Maio foi inscrito como funcionário da Companhia de São Tiago, e assim, também passou a receber um salário. Mas depois de alguns meses, Camilo cansou daquele ambiente e ficou trabalhando aborrecido e impaciente, no Hospital tudo se tornou insuportável para ele, deixando-o ansioso para sair dali. Buscando espaço para distrair, voltou ao jogo de cartas. E por isso, foi repreendido diversas vezes, mas não obedecia, o demônio do jogo era mais forte. Então um dia despediram Camilo.
QUIS CONTINUAR A VIDA MILITAR
Com a mochila embaixo do braço, deixou o Hospital São Tiago numa fria manhã de Dezembro. Roma estava em festa, pois comemorava a vitória das forças aliadas ao Papa sobre os turcos, na famosa batalha de Lepanto. E nas praças, onde ferviam as comemorações, se encontravam também, as juntas de alistamento militar, para a continuidade da campanha contra os otomanos. E justamente era isto que ele almejava. E assim, em Janeiro de 1572 começou a aventura militar do jovem Camilo, mercenário assalariado da Republica de São Marcos (Veneza). Por três anos, teria se deslocado de um teatro de guerra para outro, de uma extremidade à outra do Mediterrâneo, arriscando a vida e compartilhando a existência brutal dos companheiros de armas. E nas folgas, alimentava o seu terrível vício das cartas, onde perdia em poucas horas, todo o salário suado. Em 7 de Março de 1573, foi assinado o tratado de paz com os turcos, não sem o aborrecido protesto do Papa Pio V, que não concordava em dar paz ao inimigo. Então, Camilo teve a oportunidade de rever o solo pátrio. Despedido e desempregado, voltou a Roma com uma boa economia financeira numa bolsa e os dados e as cartas numa outra e, como sempre, foi para o porto de Ripetta, onde já estava bem ambientado. Como de costume, se deu mal, perdeu o dinheiro, as bolsas e parte da roupa.
A Espanha ainda estava em pé de guerra contra os turcos, porque os otomanos ambicionavam se apoderar das possessões espanholas na África. E por essa razão, Madri abriu alistamento militar objetivando engrossar as suas tropas na África. Camilo foi e se alistou na primavera de 1574. Na continuidade, assim que o navio partiu com destino a Tunis, logo que passou por Capri foi atingido violentamente por uma tempestade repentina. O ímpeto das ondas e a força do vento eram tão fortes, que quebraram o mastro principal da embarcação. Com muito heroísmo e disposição dos marinheiros, a golpe de remo fizeram o navio retornar ao porto de Nápoles.
Consertado o veleiro, seguiram viagem. Em Tunis desembarcou a tropa e logo quatro companhias foram enviadas a Goletta, onde os espanhóis sofriam o assédio dos inimigos turcos. Acontece que por uma incrível falta de comunicação, o Comandante do forte espanhol, presunçoso de suas possibilidades, achou por bem de levar a fama de herói à custa de seus soldados, recusando desdenhosamente qualquer ajuda. Afirmou que ele e seus homens venceriam os turcos. Assim as quatro companhias que ali estavam se apresentaram em vão, inclusive Camilo, e desse modo, regressaram a Tunis e a seguir retornaram a Itália, ficando em Palermo, sem ter desferido um golpe de espada e nem disparado um tiro.
Mas lá naquele forte espanhol, a realidade era outra. Em 24 de Setembro de 1574, as fortalezas de Goletta e de Tunis capitularam e foram destruídas pelos turcos que mataram todos os soldados da coalizão. Com tristeza, Camilo e seus companheiros receberam as notícias na Itália, onde as guarnições ainda permaneciam acampadas aguardando ordens para entrar em combate. Muito triste ficou o nosso Santo, mas não o suficiente para afastá-lo do jogo, onde perdeu quase todo o dinheiro recebido até aquele momento.
SEGUNDA PROMESSA A DEUS
Antes do final de Outubro veio à ordem de retornarem ao mar, seguindo de Palermo a Nápoles. Durante três dias e três noites de viagem, tudo correu bem, o mar, o tempo e a navegação. De repente surgiu uma imensa tempestade, as galeras oscilavam pavorosamente entre as enormes ondas, na noite escura sem lua, rasgada pelos terríveis relâmpagos acompanhados de impressionantes estrondos. Todos estavam apavorados e lançavam “altíssimos brados aos Céus” , suplicando a misericórdia Divina. Também Camilo, não menos apavorado que o pessoal de bordo, logo correu para a ponte da embarcação e prostrando-se de joelhos com as mãos juntas implorou aos Céus, dirigindo ao SENHOR dolorosas e sentidas palavras: “Ajuda-nos SENHOR, salva a nossa vida”. Depois de um curto espaço de tempo, ainda olhando para o Céu, disse: “Se me tirares deste inferno, TE prometo colocar finalmente em prática o velho voto de me fazer franciscano. SENHOR, desta vez acredite é sério. Também sofro porque faltei a minha palavra com o SENHOR. Mas agora, me empenharei solenemente, meu DEUS, não vou faltar. Faze-me escapar desta fúria, e a vida que me tiveres dado novamente, empregarei para sempre em TEU serviço, na paz e na santidade de um Convento”.
Era o dia 28 de Outubro de 1574, quando depois de dizer aquelas palavras, Camilo se calou, fechou os olhos e humildemente abaixou a cabeça. As ondas do mar foram se amainando, os trovões gradativamente diminuindo e a tempestade aos poucos foi se afastando para longe. Com os primeiros clarões da manhã já se podia vislumbrar a orla costeira da baía napolitana.
Todavia, depois de ter pisado a terra firme em Nápoles, o jovem soldado logo se esqueceu daquele profundo apelo lançado aos Céus e do seu voto feito a DEUS, recomeçou como antes: más companhias, uma jogatina desenfreada, muito vinho e palavrões. Perdeu tudo o que havia guardado. E agora, o que fazer? O cansaço tomava conta de seu corpo, precisava repousar e relaxar, tanto mais que a chaga no pé direito doía novamente, pois com o calor excessivo, deu origem a um prurido e de vez em quando sangrava. Mas ele não podia parar, porque como iria viver? Pedindo esmolas?
APELANDO PARA A MENDICÂNCIA
No dia seguinte colheu informações e decidiu, na companhia de Tibério, um amigo e companheiro de armas e de infortúnio, partir para Veneza a fim de se tornar novamente soldado da República de São Marcos. Mas as informações não eram concretas, uns diziam que ia começar o alistamento, outros diziam talvez, quem sabe, e a dúvida permanecia. Mas para Veneza eles foram e na verdade, não havia previsões de quando seria o alistamento. E agora, o que os dois companheiros iam fazer para conseguir dinheiro na Manfredônia? Trabalhar? Nenhum dos dois sabia fazer nada, nunca trabalharam... Não restava senão a possibilidade de mendigar! O pensamento repugnava Camilo... Mas, que mais poderia fazer para sobreviver à fome, ao frio e todas às dificuldades? Camilo decidiu: “Será a primeira e última vez”. Disse para si mesmo, para criar coragem: “Aqui ninguém sabe quem eu sou. Nos Abruzos preferiria morrer de fome a me rebaixar desta forma. Vamos Camilo, força! É só esta vez! Amanhã você terá uma idéia para superar este problema”. Aproximou-se lentamente da porta da Igreja, disfarçando, com as mãos no bolso da calça. Olhou para um lado e para o outro, e sem se assentar no chão como tantos outros miseráveis, na entrada da Igreja, ele tirou lentamente o chapéu com a mão direita e apresentou aos fieis que saiam ou entravam no Templo. Antonio Nicastri, um velho siciliano que trabalhava para os Padres Capuchinhos, curioso e compadecido, aproximou-se do estranho mendicante e perguntou:
- “Meu jovem, o que você diria de trabalhar num Bairro próximo daqui? Estamos construindo o Convento dos Capuchinhos, e mais dois braços ajudariam. Poderia ganhar mais e sair da rua. Vê-se que não está habituado”.
Surpreso pelo interesse, mas nem um pouco entusiasmado pela idéia de “trabalhar” , Camilo agradeceu e recorreu a certa diplomacia:
- “Na verdade, estou aqui com um companheiro de armas, ao qual estou em dívida, porque ele vendeu o manto para me dar uma mão. Tínhamos projetado ir a Barletta, onde parece que há um recrutamento. Por isso, antes de dizer-lhe “sim” ou “não”, devo ouvi-lo”.
Desculpas e meias-verdades, para ganhar tempo. O senhor Nicastri não insistiu, mas também não retirou a proposta. Sua experiência de vida compreendeu aquele que mendigava, e por essa razão, discretamente procurou animá-lo a escolher bem, segundo o seu interesse e necessidade. E sorrindo, apertou o ombro de Camilo, como que para tranquilizá-lo e disse: “Está bem, mas nesse período do inverno é difícil se organizarem expedições militares. Em todo o caso, gostaria de saber a sua resposta amanhã de manhã. Eu moro ali”. (E mostrou-lhe um portãozinho bem defronte a Igreja de São Domingos).
Tibério logo que soube da proposta feita ao amigo, interrompeu bruscamente: “Você está louco? Trabalhar e suar igual um animal? Ficar embrutecido por algumas moedas? Vamos pelo nosso caminho, livres, sem qualquer laço, respeitados e bem pagos. Tire essa idéia da cabeça, vamos partir e logo chegaremos a Barletta, para ver se São Marcos nos aceita. Se for tudo bem, amanhã mesmo, já poderemos ter um bom dinheiro no bolso”.
PRIMEIRO TRABALHO ASSALARIADO
Meio em dúvida, indeciso e confuso, Camilo aceitou a insistência do amigo e com Tibério caminharam para o sul. Já haviam percorrido umas doze milhas, quando a escuridão da noite foi clareada por lanternas de um grupo de caminhantes que vinham em sentido contrário. Eram militares, como eles, em busca de recrutamento. Estavam voltando desiludidos de Barletta, onde as informações sobre o alistamento veneziano se tinham revelado meros boatos. Os dois reagiram de modos diferentes: Tibério decidiu seguir em frente, enquanto Camilo decidiu voltar. O bom-senso lhe indicava que no momento, o melhor caminho era aceitar a proposta do senhor Nicastri. Regressou com toda pressa a Manfredônia. Chegou quando o dia amanhecia. Esperou que o sol estivesse mais alto no Céu e bateu à porta do senhor Antonio Nicastri. Ele o recebeu amigavelmente e o acompanhou ao Convento dos Capuchinhos, apresentando-o ao Guardião, Padre Francisco, siciliano de Módica. O Frade o acolheu com um sorriso e um forte aperto de mão. Discretamente afastou-se um pouco e conversou com o Nicastri, e tomando conhecimento da inexperiência de Camilo, confiou ao jovem um trabalho genérico, como encarregado dos serviços pesados: carregando em dois burros o material de construção: cal, água, pedras, ferramentas, madeira, etc., e levando aos pedreiros no canteiro das obras. Em suma, no dia 1º de Dezembro de 1574, começou a trabalhar pela primeira vez em sua vida, num serviço pesado e bem monótono que logo ameaçou tirar o entusiasmo do recém chegado. Mas pensou confiantemente: “Vamos ter coragem Camilo, é só para recuperar as energias”. Além de ser a primeira vez que trabalhava, não foi fácil também pela dor no pé, que aumentava com o esforço. Com o avançar do inverno, surgiu o problema do frio e as vestes dele eram muito finas para combater a baixa temperatura. Os Capuchinhos lhe ofereceram um hábito como o deles, era um tecido mais grosso e apropriado. Mas ele não aceitou, não queria parecer como um deles, como um frade! Mas no fim, o gelo foi mais forte do que toda aversão, e ele aceitou cobrir-se com o hábito de São Francisco. Certo é que os frades passaram a compreendê-lo melhor, observaram que naquele estranho e misterioso rapaz, havia alguma coisa boa: honestidade, uma grande sinceridade, uma afetividade ferida, provada pela solidão e durezas da vida, por isso, não se preocupavam muito, se às vezes nos momentos de descanso ele ficava com o semblante pensativo e ausente, divertindo-se ou jogando paciência com um velho e imundo baralho.
No final de Janeiro de 1575, quando a construção do Convento chegou ao fim, os padres não querendo perdê-lo, confiaram-lhe outras tarefas, como transportar nos burrinhos, alimentos e outras coisas, para os Conventos vizinhos. Um dia, o Padre Guardião lhe confiou uma carga de farinha para ser entregue aos irmãos do Convento vizinho de San Giovanni Rotondo (aquele Convento onde anos mais tarde viveu o Padre Pio), situado no Monte Calvo, ao nordeste da Manfredônia. Os religiosos de lá, por sua vez, mandariam outros mantimentos e dois pequenos barris de vinho, para o Convento de Manfredônia.
NO CAMINHO DA CONVERSÃO
Assim, na manhã de 1º de Fevereiro, Camilo carregou os burros e montando no lombo de um deles, seguiu viagem. A estrada além de pedregosa tinha muitos malfeitores que escondidos, buscavam roubar todos que passavam por ali. Mas a vigem transcorreu tranquila e a tarde, ele chegou ao seu destino. Logo uns fradezinhos correram para ajudá-lo a descarregar os animais. Depois de guardada a carga, Camilo relaxou um pouco e saiu para o bosque do Convento, para caminhar e respirar aquele ar puro, na companhia do Frade Guardião, Padre Ângelo, que desde o primeiro momento, por sua gentileza e calor da acolhida, tocou o coração de Camilo ganhando a sua simpatia. Os dois seguiam conversando coisas menos importantes, mas na continuidade dos assuntos, quase sem perceber, Camilo começou abrir o seu coração, confiando ao companheiro de caminhada sua vida e os seus fracassos, permitindo ao Padre Ângelo compreender as suas angústias e tormentos, e ver também, o manancial da riqueza interior que ensejava a possibilidade dele reagir e buscar somente o bem. Falou o Frei Guardião:
- “Você precisa de paz, Camilo. O que vale realmente é somente DEUS. O resto não é nada. Preocupe-se em procurá-lo, em pedir, alegrar-se NELE e agradá-LO. Porque só assim você poderá atingir o único objetivo pelo qual vale a pena se esforçar, lutar e sofrer nesta vida tão frágil e incerta, que é salvar a alma, a única coisa nossa que não morre”.
- “Tem razão, Padre”, respondeu Camilo, “Mas a vida às vezes é tão dura e tão difícil! O mundo parece feito exatamente para nos afastar de DEUS”!
- “Mas você precisa ser forte, não é um soldado”? Replicou decidido o Padre, olhando firme em seus olhos. “Quando se sentir desencorajado ou tentado pelo diabo, corte logo a tentação e cuspa-lhe no rosto. È o único modo de se livrar dele e seguir pelo caminho certo”.
Camilo sentiu o golpe, embora ainda não pudesse saber que aquela exortação tão simples e singela, mas viva e incisiva, lhe ficaria gravada na mente por toda a vida.
- “Reze por mim”. Pediu ao Padre, despedindo-se, edificado com as palavras que acabara de ouvir.
Segundo uma tradição, Camilo dormiu no mesmo quartinho onde três séculos depois viveria o Padre Pio durante décadas. Na verdade, o Padre Pio de Pietrelcina estava convencido deste fato, tanto que ele mesmo dizia: “Nesta cela Camilo se fez Santo em uma noite, e eu, depois de ter passado nela tantos anos, ainda sou um pobre pecador”.
No dia seguinte, Camilo não acordou um cristão perfeito, mas os baluartes de sua estrutura foram estremecidos naquele encontro com DEUS. Vamos revivê-lo o quanto possível.
Era o dia 2 de Fevereiro, Festa da Candelária, Purificação de MARIA, e o jovem participou da Santa Missa e recebeu a tradicional vela. Depois do café, despediu-se dos frades e muito afetuosamente do Padre Ângelo. Com os dois animais já carregados, montou e se afastou lentamente de San Giovanni Rotondo. Camilo não era o mesmo. Sentiu que alguma coisa aconteceu em seu interior e deixou o seu coração inquieto. Seu pensamento circulava veloz, e fisicamente sentia-se prostrado e angustiado. Em sua mente as palavras do Padre Ângelo ressoavam claras infundindo-lhe a certeza da verdade. Em dado momento sentiu uma pressão tão grande no peito, que parou o animal e deixou o seu corpo cair sobre o pescoço do burro e na sequência, deixou-se escorregar por terra. No chão, vagarosamente de gatinhas, alcançou uma rocha arredondada, apoiou nela os braços e permaneceu de joelhos entre a pedra e a vegetação. Parecia-lhe ter “o coração em pedaços e esmagado pela dor”, ao mesmo tempo em que lhe envolveu uma vontade irresistível de chorar. Nesse estado, entrelaçou os dedos com força e apoiando a fronte nas mãos juntas, se abandonou num copioso e interminável pranto e gritou soluçando: “Como pude desperdiçar a minha vida desta maneira, sem perceber o que estava fazendo? Meus pais tinham tanta esperança no seu filho único e eu os desiludi e angustiei. Não aprendi nada, não sei fazer nada, a não ser estripar os inimigos, correr atrás das mulheres, brigar e gastar o dinheiro nas casas de jogo, me reduzindo a pedir esmolas e a trabalhar como ajudante de pedreiro. Como fui cego! No entanto, o SENHOR já me havia chamado: por duas vezes fiz voto de mudar de vida, de me fazer frade, e depois, ao contrário, recomecei no erro, pior do que antes. Mas agora chega! TU SENHOR, sempre quis a minha conversão e a partir deste momento, com TUA Graça, eu também estou definitivamente decidido a querer, e para sempre. Perdoa as minhas transgressões, tenha piedade deste grande pecador, conceda-me a possibilidade de me reabilitar, de fazer penitência pelo resto da minha vida, e arrependido das minhas culpas, chorar e lavar a imundice dos meus pecados. Com TUA ajuda SENHOR, desde hoje, desde este momento, será tudo diferente. Agora basta de mundo! Basta de mundo”!
Que libertação para Camilo naquelas lágrimas! Quanto mais chorava, mais gritava no silêncio daquela imensa região erma, trazendo consolo para a sua dor, arrependimento de seus muitos pecados, repugnância de si mesmo por tê-los praticado, e o consolo de fazer o propósito e poder cumprir a exigência de mudar de vida. Saboreando a paz que envolveu o seu coração, Camilo ainda permaneceu muito tempo chorando, rezando e agradecendo ao SENHOR, a misericórdia e as graças que ELE derramava em sua vida.